Para quem olha de fora, a impressão é a de que o prédio do Teatro e da Faculdade Dulcina estão fechados, mas lá dentro, três vezes por semana, uma equipe de profissionais voluntários empresta seu talento e conhecimento técnico há exatos nove meses, dando vida a algo que parecia estar morto, mas que renasce dia após dia.

O trabalho de resgate, inventário, digitalização, catalogação, arquivamento e difusão do material da Fundação Brasileira de Teatro tem por objetivo lançar luz a um rico acervo que, com o passar dos anos, manteve-se oculto justamente por não existir um plano continuado de manutenção de pertences pessoais da atriz Dulcina de Moraes e de patrimônio material relacionado à Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, ao Teatro Dulcina e à Companhia Dulcina & Odilon, muito atuante no Brasil na primeira metade do Século XX. A ideia principal da atual gestão da FBT é a criação de um museu permanente com o acervo da Fundação Brasileira de Teatro, uma das mais antigas e relevantes na trajetória do teatro nacional.

Após anos de crise, equívocos de gestões e linhas operacionais que prejudicaram a instituição, uma nova equipe, com o aval do Ministério Público, tenta salvar o que ainda há de patrimônio material e imaterial no prédio situado num dos principais setores de Brasília – O CONIC.

Por meio de uma chamada aberta nas redes sociais da FBT, uma equipe de voluntárias se formou aos poucos em prol da manutenção e preservação de um dos acervos históricos teatrais mais completos da era moderna. Elas identificam, inventariam, atualizam e reorganizam milhares de fotografias e indumentárias, centenas de documentos históricos e dezenas de telegramas e cartas oficiais da época da ditadura militar. Um trabalho silencioso, cauteloso e extremamente respeitoso com a memória artística brasileira.

Do time feminino, a primeira profissional que abraçou a ideia de recuperação desse acervo histórico foi Letícia Amarante, museóloga formada pela UnB, historiadora formada pelo UniCEUB e especialista em Gestão Cultural. Atendendo ao chamado da rede social da Fundação Brasileira de Teatro, Letícia já teve sua primeira experiência repleta de intensidade:

“A notícia do ‘chamamento’ chegou até mim através de amigos pelo Instagram. Fui até a Fundação Brasileira de Teatro para conhecer e logo passei a montar alguns manequins para uma gravação de TV e, também, na intenção de organizar um espaço para acolher o público visitante, além de oferecer condições para futuras entrevistas. Nesse dia, buscamos mobiliário de exposição, roupas e figurinos teatrais para expor os objetos. Nos dias subsequentes, muita agitação: reportagens de diferentes emissoras sobre as descobertas e o trabalho que desenvolvíamos de acordo com a nova gestão. Recebemos a visita de diversos especialistas na área, produtores culturais, jornalistas, professores, advogados, assim como a visita de parentes de Dulcina e Odilon, como o sobrinho dele, Thiago de Melo”, comenta a profissional.

Enquanto o diretor do Espaço Cultural da FBT, Josuel Junior, iniciava o processo de digitalização das fotografias, organizando cada nicho de fotos em coleções de espetáculos ou linhas cronológicas, Letícia e outros voluntários foram convidados a folhear essas fotografias à medida em que iam sendo organizadas – tudo isso para uma familiarização visual do material e dos recortes históricos.

“Nós íamos organizando e conhecendo as roupas e os figurinos encontrados. Com o tempo, o espaço foi tomando forma em meio às visitas criativas que incentivaram e direcionaram a construção de uma base sólida para criação de algo futuro e maior. Com as fotos organizadas, eu iniciei o processo de registro e inventário de cada uma delas no dia 25 de novembro de 2022”, comenta Letícia.

Todo o processo de estudo e detalhamento dos objetos e itens registrados propõe a leitura de uma perspectiva histórica da Fundação Brasileira de Teatro. Trabalhando sempre às terças e quintas, Letícia Amarante já fez o registro de mais de 250 fotos (de 1933 a 1940), detalhando dados sobre nova numeração de registro, nome, título, data, técnica, dimensão, condição e localização, igualmente realizando pequenos reparos, como a retirada de papéis ácidos usados como base, raspagem de colas e fitas, retirada de grampos metálicos e organizando em pastas suspensas por ano, peça teatral/viagem. Tudo seguindo a ordem de n⁰ de registros – o que facilitará o trabalho de futuros historiadores que terão acesso ao acervo.

Aos poucos, outros profissionais se uniram ao time que cuida do acervo histórico da FBT. Outra integrante, também formada em Museologia pela UnB, entrou na equipe. Seu nome é Desiree Calvis, que após se familiarizar com o extenso material presente no prédio iniciou o processo de inventário das roupas e figurinos. Em meio a isso, teve início a construção de vários documentos importantes para regularizar um acervo museológico.

“Meu primeiro contato com o acervo foi impactante. Eu nunca tinha ido à Faculdade de Arte ou ao Teatro Dulcina. Fiquei muito mexida em ver o acervo e a história de Dulcina e Odilon, que foram figuras tão importantes para a história do teatro brasileiro. Presenciar a forma como os objetos estavam se deteriorando, por falta de cuidado e de um acondicionamento adequado mexe muito com quem é da área da museologia”, explica Desiree.

Ao perceber que não havia sido realizado um inventário completo em formato digital, Desiree entrou de vez na equipe e trouxe métodos modernos e atualizados dentro do padrão da museologia, se dispondo a recomeçar esse trabalho que já foi iniciado em décadas passadas por outros profissionais.

“Atualmente, temos nosso laboratório técnico montado nesse prédio sem água e sem luz, o que dificulta tudo. Com as indumentárias, começamos o inventário com peças de alfaiataria, algumas em estado ruim de conservação. Por sorte, temos o auxílio direto de uma profissional ligada ao universo da moda e de corte e costura. Ela nos ajuda a identificar a tipologia de cada peça e a etiquetar uma a uma com o novo número de inventário. Posteriormente, passamos os dados de cada item para a ficha catalográfica e liberamos os figurinos para o registro fotográfico”, explica a museóloga.

Quem assumiu magistralmente a função de consultora de moda e de corte e costura, foi a costureira de carreira Ana Maria da Silva, a última integrante a se unir à equipe que, aos poucos, faz um trabalho primordial para a preservação desse rico acervo. Ana Maria atendeu a mais um chamado feito pela FBT nas redes sociais. Com muita simpatia e disposição, a veterana ajuda a tornar o trabalho das museólogas mais dinâmico.

“Eu fiquei muito encantada e maravilhada com tantas peças, com as histórias de cada uma delas e, ao mesmo tempo, com um sentimento de tristeza por estarem naquelas condições de conservação, mas sou muito agradecida por poder colaborar de alguma forma para que mais pessoas tenham acesso à essa história. São tecidos finos e cortes que explicam as épocas. Eu não conhecia a história de Dulcina, muito menos o teatro. É uma oportunidade de crescer mais e mais. Nunca imaginei que eu poderia usar meu ofício para um trabalho tão importante para o Brasil. Toda terça-feira eu acordo muito feliz em saber que eu posso ajudar a construir essa história de Dulcina outra vez”, finaliza Ana Maria.

Aos sábados, todas as roupas e figurinos são fotografadas em um estúdio móvel montado no mesmo andar do laboratório técnico. A iluminação é feita por refletores ligados a baterias portáteis. Semanalmente, cerca de 35 itens são fotografados nos manequins para a digitalização e identificação mais facilitada no futuro.

Quem ajuda no processo de fotografias de cada figurino é o ator e professor Roberto Sá, que desde o início do trabalho no acervo esteve presente, passando pelas fases mais difíceis de identificação e organização de tudo o que foi encontrado no prédio.

“Ano passado, quando iniciamos uma força-tarefa na fundação e com a equipe bastante reduzida, o primeiro passo que tomei foi me reencontrar nesse espaço novo e entender o que era artisticamente valioso para a história do teatro nacional. Nas primeiras semanas, tudo que eu encontrava pela frente me enchia os olhos de tanto orgulho. Não é fácil trabalhar num ambiente sem energia e sujo. Isso atrapalhou o rendimento do processo, mas não foi o suficiente para desistirmos. Agora, nessa segunda etapa, seguimos com a equipe maior e consequentemente nos sentimos mais organizados: Tudo tem seu lugar, tudo é protocolado e guardado cuidadosamente. É mais fácil manusear os objetos sem ter o medo de perdê-los porque temos consciência de onde os encontramos e onde estamos guardando. Existe sempre uma surpresa na história de Dulcina e isso nos motiva a continuar a pesquisa. É o amor pela arte!”, finaliza o artista.

Diferentes ações já foram realizadas por gestões anteriores da FBT, fossem por meio de trabalho filantrópico e voluntário, por meio de delegação de funções administrativas e patrimoniais ao longo das administrações e por representações da Fundação Brasileira de Teatro. No entanto, todas as tentativas foram interrompidas, pausadas ou descontinuadas, mediante alterações na linha curatorial e administrativa da própria instituição. Por muito tempo, confundiu-se o que era Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, Teatro e Galeria Dulcina e FBT. É tempo de deixar claro para a sociedade civil, classe artística e representantes governamentais as ações artísticas, pedagógicas e patrimoniais, a fim de que o ensino de arte, a manutenção teatral e artística e a história do teatro brasileiro sejam valorizadas no DF e regiões.

O casal de atores e produtores Dulcina de Moraes e Odilon Azevedo foi responsável pela criação dessa fundação que auxiliou na formação artística de grandes nomes dos palcos e das telas. Se tais divisões entre FBT, FADM e Companhia Dulcina & Odilon nunca estiveram totalmente claras e explicadas para com colaboradores, funcionários, parceiros e estudantes do prédio situado no Setor de Diversões Sul de Brasília, como esperar que a sociedade civil se engaje pela história de Dulcina de Moraes, seu legado e a importância de seu trabalho para a cultura brasileira? Por isso, a decisão de abrir os arquivos originais de Dulcina para o público vem de encontro a uma necessidade da década de 2020: a de permitir o acesso a bens materiais e imateriais, conquistando engajamento, respeitabilidade e identificação com o acervo presente no prédio da FADM/FBT – o acervo que resume décadas de investimento e profissionalização do teatro brasileiro.